
Divulgação: Galeria Rodrigo Ratton
É impossível distinguir a arte dos costumes de um povo. O Brasil sabe bem disso: alguns de nossos artistas registraram a história brasileira como ninguém. Não há quem tenha compreendido o trabalho rural melhor que Portinari, a primeira metade do século passado do que Adoniran Barbosa, ou a vida nas favelas na virada do milênio do que o Furacão 2000. É inevitável, então, que a arte – em algum momento – fale sobre o Jogo do Bicho, uma das maiores instituições culturais brasileiras. E fala.
Mas a loteria animal, que geralmente é retratada em filmes, músicas e séries, também ganhou seu espaço de representação na erudita arte plástica. Agora existem belas pinturas sobre Jogo do Bicho. E o responsável por isso é o artista mineiro Froiid.
Pintor, ele bolou 25 quadros, um para cada animal do Jogo do Bicho, e nomeou a exposição com uma afirmação: o Bicho é o Zodíaco brasileiro.
O que significam as obras?
Para compor os quadros, Froiid misturou alguns conceitos. Ele criou representações dos animais, usando apenas formas geométricas e com cores bem vibrantes, como era o culto modernismo brasileiro (que completa 100 anos agora em 2022, diga-se de passagem).
Junto desses desenhos abstratos vieram os nomes dos animais, escritos de uma maneira bem específica: com letras verneculares (ou seja, desenhadas a mão), lembrando muito a forma como são escritas as frases de parachoque, nos caminhões que percorrem Brasil adentro.
A vontade do artista era misturar o elitismo artístico com a vivência popular, em uma forma de sátira. E tem coisa mais popular do que o Jogo do Bicho? Difícil.
Como ficou o visual das pinturas sobre Jogo do Bicho?

Divulgação: Galeria Rodrigo Ratton
O resultado são 25 pinturas absolutamente únicas, com uma brasilidade própria. De modo que cada um dos animais, do avestruz à vaca, ganha uma representação inédita e abstrata. É inevitável encarar cada um dos desenhos por algum tempo, para tentar identificar as relações que o artista fez entre os bichos e aquela geometria colorida que ele pôs nas telas.
O objetivo, porém, não é exatamente adivinhar o que o artista pensou, mas criar as próprias interpretações sobre os desenhos. Ao mesmo tempo sente na pele esse jogo das obras abstratas contrastando com o letreiro tão popular.
O que você tem no final, é uma brincadeira entre artista e espectador, que ficam se desafiando o tempo todo sobre o significado de cada traço ou cor que acabou naquelas telas. A arte, por si só, vira uma espécie de jogo dos bichos – que, dessa vez, não precisam ser sorteados para ter um vencedor.
Quem é Froiid?
O artista nasceu em Belo Horizonte em 1986 e desde 2011 vem ganhando reconhecimento na cena artística brasileira, com obras que – justamente – necessitam do público para funcionarem do jeito programado.
Seu trabalho mais famoso já tinha a ver com jogo, com bicho, mas não necessariamente com Jogo do Bicho: intitulado “É hora da onça beber água”, trata-se de uma obra interativa, uma mesa de sinuca de 13 metros de comprimento, cujos visitantes poderiam jogar. A intervenção artística levou o respeitado prêmio Décio Noviello, de 2020, que reconhece artistas brasileiros de vanguarda.
Suas sacadas, aliás, possuem uma base teórica poderosa. Froiid é formado em Artes Plásticas na Universidade Estadual de Minas Gerais, com mestrado em Artes Visuais na mesma instituição. É nítida a influência acadêmica na construção de suas obras, mesmo que seja para ignorar a academia por um tempo, e se jogar de cabeça no popular.
Por que o Jogo do Bicho tem tanta relação com as artes?
Há diversas respostas para isso, mas a principal é: porque o jogo faz parte da cultura brasileira. Com mais de 130 anos de história, o Jogo do Bicho acabou entrando no dia a dia do brasileiro. Como cantar e pintar sobre o povo excluindo uma parte tão simbólica do cotidiano urbano, quanto essa loteria? Hora ou outra, é inevitável que o Bicho seja retratado. Mesmo hoje, em que a cultura do bicho não é tão vista nas ruas como talvez fosse há algumas décadas atrás, criou-se um novo costume que digitaliza, por exemplo, a busca de resultados do poste.
Não só: algumas figuras centrais na cultura do Bicho também contribuíram fortemente para o desenvolvimento de outras áreas culturais. É o caso de Dr. Castor, que usou parte da fortuna adquirida como bicheiro para apoiar escolas de samba e times de futebol. Rapidinho, então, os sambistas começaram a compor sobre o sorteio e misturaram ainda mais a cultura brasileira com o Jogo.
Da próxima vez que você ouvir Arlindo Cruz cantando que lá em Madureira “Uma fezinha até posso fazer / No grupo dezena, centena e milhar”, então, lembre-se que o Jogo é parte de todas as culturas. Não só do samba, mas também das galerias. Seja com estrofes ou pinturas, o Bicho será lembrado como uma característica do povo.